quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Poema da Semana. "Evocação do Recife", Manuel Bandeira

Olá turmas. Segue um belíssimo poema de Bandeira, com fartas referências à história local, à paisagem da cidade, de um tempo onde a Caxangá já era considerada um "sertãozinho"... Quem quiser ouvir o próprio Manuel Bandeira recitando, visite o site da editora COSAC & NAYFI, cujo link eu coloco ao fim do poema. A editora está lançando uma antologia que foi organizada pelo próprio poeta juntamente com um cd onde o mesmo recita os poemas. Mais uma mostra sobre o encontro entre História e Literatura.

Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois - Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam: Coelho sai! Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente nos longos da noite um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da União...Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora......onde se ia pescar escondido
Capiberibe- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferroos caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começoua passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe- Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoimque se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...A casa de meu avô...Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidadeRecife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom,
Recife brasileiro
como a casa de meu avô

Para ouvir o poema recitado pelo próprio Bandeira:

http://www.cosacnaify.com.br/noticias/mb_50poemas.asp

2 comentários:

Unknown disse...

Curiosidade:

Professor, esse poema foi retrabalhado por Frederico Barbosa, poeta pernambucano, e dedicado a Jomard Muniz de Brito. Olha aí:

Vocação do Recife
para Jomard Muniz de Britto

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
Manuel Bandeira – Evocação do Recife

Recife sim
das revoluções libertárias
da teimosia ácida
do contra.

Não o Recife da minha infância
de golpe e exílios
gorilas e séquito
de vermes venais.

Recife sim
da coragem Caneca
da conscientização neológica
das lutas ligas lentes
do sempre
não.

Não o Recife sem literatura
no papo raso da elite vesga
a vida mole e a mente dura.

Recife sim
poesia e destino
na memória clandestina
de sombras magras
sobre pontes e postais.

Bandeira
sutil na preterição sim.

Clarice sim
frieza entranhada
na estranheza de ser Recife.

Recife sim
na literatura navalha
só lâmina solar
solidão sem soluços
só suor de João Cabral.

Recife sim
nos cortes certos
de Sebastião
contra a metáfora vaga
e o secreto.

Não o Recife sonho consumo
de turistas e prostitutas
na praia do sim
shopping sem graça
de Boa Viagem.

Recife sim
que em Nova Iorque
se revê
Hudson Capibaribe
ecos de Amsterdam.

Recife rios
ilhas retalhos
retiros velhos
reflexos de Holanda.

Não o Recife que revolta
na extrema diferença.
Não o Recife que expulsou
sua própria inteligência.

Recife sim
que se revolta
vivo.

Faca clara
que ainda fala
não.

Unknown disse...

O poema é uma verdadeira aula de Recife, é lindo, só a voz dele que é feinha!
Abraço!